Uma ação de pequena entidade gaúcha contra a poderosa General Motors

 A pequena contra a maior

Está na 4ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre – onde, desde o dia 7 aguarda despacho inicial – uma rara ação da não argentária entidade – sem fins lucrativos – chamada Núcleo Amigos da Terra/Brasil contra a argentária General Motors do Brasil. A essência: reação de ambientalistas atingidos pela poderosa multinacional.

A autora é uma sociedade civil de interesse público, sendo uma das mais antigas associações ambientalistas do RS. Fundada em 1964, em sua primeira fase foi uma organização de mulheres. (Proc. nº 001/1.18.0059233-8).

O bioconstrutor Fernando Campos Costa, presidente da entidade (ele é morador em Porto Alegre e integra um grupo que prega a construção de casas ecológicas pelo Brasil) e os quatro advogados da entidade – com escritório na discreta cidade interiorana de Languiru (RS) – resumem, em uma frase, o objetivo da ação: “Investir contra o comercial realizado para a promoção da picape S10-2018, fabricada pela GM, que celebra o agronegócio”.

A General Motors do Brasil é a maior subsidiária da estadunidense G.M. na América do Sul e a segunda maior operação fora dos Estados Unidos. A empresa brasileira foi fundada em 1925. No mundo, o conglomerado empresarial está presente em seis dos sete continentes (ausente apenas da Antártida), com 396 instalações, tendo 216 mil empregados.

A campanha publicitária questionada reconhece a importância do homem do campo para o crescimento do País e informa que “o agronegócio é um dos setores mais importantes para a economia – embora muitas vezes passe pela falta de reconhecimento de sua relevância”.

O filme apresenta cenas do dono da fazenda e líder do agronegócio, acompanhado por seu filho cuidando do rebanho, enquanto a locução enfatiza que, “apesar de alguns apontarem o dedo, julgarem, eles continuam firmes zelando não só pelo futuro da fazenda, mas também pelo futuro do Brasil”.

A ação judicial diz que, com o comercial, a General Motors está atingindo os ambientalistas, exibindo “uma carga pejorativa a quem cumpre o papel de suma importância, que é a defesa do meio ambiente”. Numa passagem do filme aparece a mensagem no aparelho celular de um dos atores da propaganda: “Agronegócio e desmatamento”. Em seguida com elogios a quem “trabalha”, “acorda cedo” e “carrega este país nas costas”, o comercial passa a versão que a denúncia é injusta e irresponsável.

A petição inicial também sustenta que “a mensagem de que o agronegócio estaria sendo denunciado injustamente, pois ´carrega o país nas costas´ desinforma a sociedade e desqualifica a agricultura familiar”. Em defesa desta, vêm as seguintes informações na peça judicial:

a) Mais de 70% dos alimentos que chega na mesa do povo brasileiro vem da agricultura familiar e não do agronegócio. Segundo o Censo Agropecuário a agricultura familiar constitui a base econômica de mais de 90% dos municípios do país com até 20 mil habitantes e absorve 40% da população economicamente ativa, pois de cada dez postos de trabalho no campo, sete advém da agricultura familiar. (Dados oficiais do Ministério do Desenvolvimento Agrário em 02.10.2017).

b) Segundo o Censo Agropecuário de 2006, a agricultura familiar constitui a base econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes; responde por 35% do produto interno bruto nacional e absorve 40% da população economicamente ativa do país.

c) O setor produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz e 21% do trigo do Brasil. Na pecuária, é responsável por 60% da produção de leite, além de 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos do país. O setor também emprega 74% das pessoas ocupadas no campo, de 10 postos de trabalho no meio rural, sete são de agricultores familiares.

 Outros números sobre a agricultura familiar

A agricultura patronal está presente em 32.114 estabelecimentos rurais, que ocupam 58,3% da superfície do Estado do RS e representam 7,5% do total de propriedades rurais gaúchas.

No que se refere à produção, a agricultura familiar gaúcha responde por 35% da produção de pecuária de corte; 98% da produção de fumo; 80% da produção de leite; 89 % da produção de mandioca; 69% da produção de suínos; 65 % da produção de milho; 61% da produção de aves e ovos; 51% da produção de soja; 35% da produção de arroz; 49% da produção de trigo; 92% da produção de cebola; 95% da produção de laranja (citros); 80% da produção de feijão.

Reforçando a importância da agricultura familiar para o mundo, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou recente relatório sobre “O Estado da Alimentação e Agricultura”. O estudo revela que a agricultura familiar tem a capacidade de auxiliar na erradicação da fome no mundo a fim de que se alcance o patamar de segurança alimentar sustentável.

Segundo a ONU, cerca de 570 milhões de propriedade agrícolas familiares administram a grande maioria das terras agrícolas no mundo sendo responsável pela maior parte da produção mundial de alimentos, fazendo com que a agricultura familiar seja a forma mais predominante de agricultura.

O estudo também revela que a agricultura familiar é, igualmente, responsável por aproximadamente 75% do total dos recursos agrícolas mundiais, o que a torna fundamental para a melhoria destes recursos e a manutenção e preservação da sustentabilidade ecológica mundial.

No Brasil não é diferente. A agricultura familiar desempenha um papel igualmente fundamental com, pelo menos, cinco milhões de famílias, representando cerca de 84% de todas as propriedades rurais do País, não obstante ocupar somente 24,3% do total da área utilizada por estabelecimentos agropecuários .

Diferenças díspares

Percebe-se, com os dados disponíveis, uma gritante diferença, pois se trata de um empreendimento comercial e industrial, bem maior e mais amplo e complexo, de agroindústrias, com elevado ganho de escala, e não de pequenos empreendimentos rurais, com caráter familiar e comunitário.

São, definitivamente, agronegócio e agricultura familiar, coisas absolutamente díspares, com interesses acima de tudo conflitantes.

Vários setores da economia fazem parte do agronegócio: bancos que fornecem créditos, indústria de insumos agrícolas (fertilizantes, herbicidas, inseticidas, sementes selecionadas para plantio entre outros), indústria de tratores e peças, lojas veterinárias e laboratórios que fornecem vacinas e rações para a pecuária de corte e leiteira, isso na primeira etapa produtiva.

Nessa conjunção, segundo o dossiê Abrasco, exatas 34.147 notificações de intoxicação por agrotóxico foram registradas de 2007 a 2014, no Brasil. O período coincide com a porcentagem de aumento (288%) do uso de agrotóxicos no nosso país entre 2000 e 2012. Só em 2014, a indústria do setor faturou mais de U$12 bilhões no Brasil.

Em outras palavras, o agronegócio significa um processo econômico ligado ao grande capital e não às pessoas, nem à sustentabilidade ambiental.

Embora a petição inicial não faça qualquer referência à abrangente campanha televisiva do “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é Tudo, Está Aqui, Está na Globo”, a “rádio-corredor forense” de Porto Alegre rapidamente fez – na sexta-feira e ontem – uma análise dos objetivos do comercial da General Motors.

Segundo arautos, “ele também busca criar uma imagem positiva e moderna do latifúndio, mascarando a real situação do campo e fazendo apologias à semifeudalidade e à semicolonialidade”.

O Espaço Vital vai acompanhar a prolação da decisão judicial inicial e, oportunamente, a eventual contestação da General Motors.

A inversão de valores

A entidade autora arremata que “papéis colocados no questionado comercial da General Motors passam a impressão de uma realidade inverídica (…) e os consumidores precisam ser esclarecidos sobre o produto automobilístico e não desinformados sobre a realidade”.

A Núcleo Amigos da Terra pretende que, por decisão judicial, a General Motors suspenda a propaganda enganosa e abusiva e ainda esclareça a seu público sobre o equívoco dos conteúdos repassados (artigo 727, do CPC). Segundo a peça inicial “as informações postas no comercial não correspondem à realidade, podendo levar o consumidor ao erro, seja consciente ou pela sensação criada de que adquire automóvel relacionado a quem ´carrega o Brasil nas costas´, quando se fala do mundo rural do país”.

Na via extrajudicial, uma outra ação semelhante do Núcleo Amigos da Terra busca que o CONAR – Conselho Nacional de Auto Regulamentação Publicitária – simultaneamente à decisão judicial, ou independentemente desta – suspenda definitivamente a veiculação do comercial, por conter propaganda enganosa.

Para ler a petição inicial, clique aqui.

Para ver o comercial, clique aqui.

Fonte: Espaço Vital


Por: Sabatti Advogados

Publicado em: 3 de novembro de 2020

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