Esta obrigatoriedade, curiosamente, não está prevista explicitamente em lei. O Código de Processo Penal de 1941 limita-se a afirmar, no artigo 24, que nos crimes de ação pública a ação penal será promovida por denúncia do Ministério Público e, no artigo 42, que o MP não poderá, dela, desistir. Mas pacífica é a doutrina no sentido da obrigatoriedade, valendo aqui citar Rogério Greco, que coloca dito princípio como o primeiro dos informadores da ação penal de iniciativa pública.

Para que se compreenda bem o significado e as consequências da adoção do princípio da obrigatoriedade da ação penal, vale lembrar Júlio Mirabete, que o define como: “aquele que obriga a autoridade policial a instaurar inquérito policial e o órgão do Ministério Público a promover a ação penal quando da ocorrência da prática de crime que se apure mediante ação penal pública”.

Ocorre que o cumprimento deste dogma jurídico brasileiro há muito tempo se revela impraticável.

Do ponto de vista da realidade judiciária, desde sempre delegados de Polícia não abrem inquérito policial para apurar crimes de origem desconhecida ou que, por qualquer razão, se revelem totalmente sem interesse. Por exemplo, o relato do furto de um celular esquecido na prateleira de um supermercado, sem que se tenha nenhum dado da autoria, não será objeto de inquérito. Neste caso, não se trata de prevaricação da autoridade policial, mas sim de evitar-se perda de tempo e gastos inúteis.

Dá-se o mesmo nas ações penais. O MP, diante de casos de bagatela ou naqueles em que as partes se compuseram (p. ex., apropriação indébita), com frequência pede o arquivamento do inquérito, em razão da flagrante inutilidade de uma futura ação penal.

Por outro lado, a Lei 9.099 de 1995, que criou os Juizados Especiais, abriu a primeira fenda no secular princípio, ao permitir que o Ministério Público celebre acordo com o acusado, nos crimes apenados até 2 anos de prisão, e também que proponha a suspensão da ação penal naqueles delitos cuja pena mínima não supere 1 ano (artigos 76 e 89).

A questão agora é saber como avançar na quebra deste princípio que, cada vez mais, contrasta com um mundo globalizado, no qual os meios eletrônicos se tornam os grandes protagonistas do cotidiano.

Vamos continuar fingindo que o princípio da obrigatoriedade vige em sua plenitude, mesmo sabendo que não é praticado? Vamos participar da encenação, tal qual tantas outras toleradas (v.g., embargos de declaração repetitivos para retardar o julgamento)? Ou vamos enfrentar o impasse e achar uma solução dentro da legalidade?

Não é fácil alterar uma prática secular. Contudo, o Uruguai rompeu a tradição e recém implantou o sistema acusatório, dando destaque à oralidade O Ministério Público passou a ter o poder de decidir quando a ação penal é necessária (Código de Processo Penal de 2017, artigos 45, “e” e 82).

Portugal adota posição intermediária. O artigo 262º, inc. 2, dispõe que o inquérito será aberto sempre que haja notícia de um crime. Porém, no artigo 280, permite o arquivamento do processo quando o crime permitir a dispensa de pena e, no artigo 281, a suspensão do processo, caso a sanção corporal não supere 5 anos.

Na Alemanha, segundo estudo de Tássia Louise de Moraes Oliveira, “…o Código de Processo Penal germânico (Strafprozeßordnung – StPO), em seu artigo 1532, determina expressamente o princípio da oportunidade da ação penal, autorizando o titular da ação a dispensar a acusação, com a aprovação do tribunal competente, quando verificada a ausência de interesse público na instauração do processo.

Nos Estados Unidos, como é de todos sabido, impera o espírito pragmático e a ação penal se rege pelo princípio da oportunidade, dando-se ao Promotor o poder de ofertar a proposta do acordo em todos os crimes, a chamada plea bargain.

No Brasil, uma mudança radical, como a feita no Uruguai, não está sendo cogitada. Nossa realidade, com uma extensão territorial grande, economia e culturas diversas, dificultam a mudança. A solução, assim, tem sido e tende a ser paulatina, passo a passo. Desse modo, nos Projetos de Lei 10.032/18 e 882/19 em andamento no Congresso, surgem possibilidades de aumentar o número de acordos na esfera penal. Os dois PLs não diferem na essência, antes, se complementam.

Vejamos as mudanças que os acordos propiciam e seus efeitos no princípio da obrigatoriedade da ação penal.

A primeira delas é a introdução do artigo 28-A no CPP. Nele se permite acordo de não persecução penal entre o MP e o acusado, em crimes de pena máxima de 4 anos de prisão. Isto significa que não há denúncia, simplesmente o acordo, encerrando-se o caso. Crimes como furto simples, apropriação indébita, contrabando e descaminho (arts. 168, 155 e 334), poderão encerrar-se no nascedouro. E para o acusado isto pode ser um ótimo negócio, não apenas se livra do peso de um processo que pode durar até 15 anos, como poderá beneficiar-se com a redução da pena, a partir do mínimo, de 1 a 2 terços.

Mas o acordo subordina-se a condições, como o acusado prestar serviços comunitários e ressarcir a vítima pelos danos causados. O benefício não alcançará reincidentes, aquele que recebeu o benefício 5 anos antes, os que têm maus antecedentes ou aqueles que a conduta social, a personalidade e os motivos e as circunstâncias não recomendem a medida.

Para os crimes mais graves, a previsão do MP 882/19 está na inclusão do artigo 395-A, singelamente chamada de plea bargain. Este tipo de acordo exige que tenha sido oferecida e recebida a denúncia. O acusado, tendo interesse, fará um requerimento ao Juízo e, a partir daí, discutirá com o MP as condições da avença. Se chegarem a uma composição, ele confessará os fatos e renunciará a qualquer recurso.

Importante registrar que o acordo proposto deverá prever a diminuição da pena em até a metade ou poderá ser alterado o regime de cumprimento, substituindo-se a pena prisão por restritiva de direitos, segundo a gravidade do crime, as circunstâncias do caso e o grau de colaboração do acusado para a rápida solução do processo. Se houver vítima, deverá haver previsão do valor mínimo para a reparação dos danos. Também se decidirá o produto ou proveito do crime.

Exemplo. José, primário, com 20 anos de idade, pratica roubo, valendo-se de uma faca, contra Maria, levando sua pulseira. Preso em flagrante, peticiona manifestando desejo de acordo com o MP. Após as tratativas, ambos submetem ao juiz proposta na qual José confessa o delito e concorda em cumprir a pena mínima de 4 anos, reduzida à metade e substituída por restritiva de direitos. Compromete-se a não recorrer e a ressarcir dano moral à vítima, se acaso mudar sua situação de pobreza. Homologada a avença, a pena será de pronto executada. O conflito estará encerrado, José terá oportunidade de voltar ao convívio social, deixando de tornar-se mais um soldado do crime se acaso vier a cumprir pena corporal. Um processo a menos na Vara e um jovem que terá a oportunidade de ressocializar-se.

Registre-se que tanto nos casos mais simples (não persecução) como nos mais sérios (plea bargain), o acordo exigirá a homologação pelo juiz, com a presença do MP e do acusado, este acompanhado de seu defensor ou de um defensor público ou advogado dativo. Não serão admitidas soluções estranhas ao Código Penal, penas exóticas, reduções ou aumentos inadequados. Só haverá acordo se houver interesse e benefício a todos os atores.

É flagrante o interesse público na abertura da obrigatoriedade da ação penal para mais estes dois tipos de transação entre as partes. Elas reproduzem o sucesso da Lei dos Juizados Especiais, que deram solução a milhares de casos penais menos relevantes. Ademais, dão à vítima um papel mais ativo, podendo, inclusive, ser ressarcida com mais facilidade.

Por fim, vale lembrar que as Varas Judiciais e os Tribunais terão mais tempo para decidir os casos mais complexos, evitando que caiam na prescrição em meio a tantos menos relevantes, e os presídios receberão menos condenados, porque os acordos procurarão sempre penas substitutivas ou reduzidas na duração. É o ganha ganha. Avançar é preciso.


Por: Livio Sabatti

Publicado em: 3 de novembro de 2020

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