Em uma série de portarias publicadas no Diário Oficial da União desta segunda-feira (8/6), o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves, anulou a declaração de anistia de 295 militares. A medida, embora tenha chamado a atenção, já era sinalizada por Damares e segue decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em outubro de 2019.

No julgamento do ano passado, o plenário do STF decidiu, por 6 votos a 5, que o governo pode levantar a anistia concedida a cerca de 2,5 mil ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB), assim como a consequente indenização paga aos agentes.

Os benefícios, que têm um custo mensal total de R$ 31,5 milhões, passaram a ser pagos a partir de 2002, quando a Comissão de Anistia concluiu que os cabos foram desligados da FAB, ainda durante a ditadura militar, por motivações políticas.

Portaria 1.104/64
No centro da discussão está a Portaria 1.104/64, baixada no primeiro ano do regime militar, e responsável pelo afastamento dos cabos. O diploma limitou a oito anos o tempo de serviço dos agentes. Após o cumprimento do prazo, eles foram desligados. A permanência só poderia ocorrer se o militar fosse aprovado em concurso para sargento.

Em 2002, a Comissão de Anistia apontou para a existência de comunicações secretas que comprovariam que os militares da FAB eram vistos como subversivos pela ditadura e que a Portaria 1.104, de outubro de 64, foi editada por motivação política..

A preocupação com a FAB teria sido exposta primeiro por meio do Ofício Reservado 04, de setembro de 1964, e, posteriormente, no Boletim 21, de maio de 1965, ambos da Aeronáutica.

Segundo o documento, a diretoria da Associação de Cabos da Força Aérea utilizava “indevidamente o nome da Força Aérea Brasileira” e tomava “parte ativa em reuniões e em atividades subversivas”, devendo ser mantida sob vigilância.

A Comissão de Anistia considerou que os documentos — embora não mencionem a FAB como um todo — evidenciam a perseguição contra os cabos.

Por causa disso, foi editada em 2002 a Súmula Administrativa 2002.07.003, segundo a qual “a Portaria 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política”. Foi este diploma que passou a justificar a concessão da anistia aos 2,5 mil cabos.

Grupo de trabalho
A partir de 2011, um grupo de trabalho ministerial, com a participação de membros da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Justiça, passou a rever as anistias. A AGU, que chegou a se posicionar em favor dos benefícios, mudou de entendimento em 2006.

Isso porque, de acordo com a instituição, a portaria baixada durante a ditadura teve natureza meramente administrativa, com fins de reorganização interna, já que na época havia um número muito grande de cabos (6.339), em comparação ao número de soldados (7.661), o que criava uma disparidade dentro da hierarquia da corporação. A título de comparação, em 2016, havia na Força Aérea 2.426 cabos para 11.574 soldados (83% do total).

“O quadro de cabos ia crescendo e o de soldados, diminuindo. Ia chegar um tempo em que haveria mais cabos do que soldados. As forças armadas formam uma pirâmide, na base [tem que ter] uma quantidade maior”, afirmou Brasilino Pereira dos Santos, subprocurador-geral da República, em entrevista ao Anuário do Ministério Público do Brasil (ainda não publicado). Brasilino foi o responsável, em 2004, por instaurar inquérito civil público para investigar a concessão das anistias.

STF
Ocorre que a tentativa de anular as anistias esbarra em um problema: qualquer ato administrativo do Estado que beneficia um cidadão só pode ser revogado dentro de um prazo máximo de cinco anos, chamado de prazo decadencial. Como as anistias foram concedidas entre 2002 e 2004, a anulação, em tese, não poderia mais ocorrer, já que o caso só foi ao STF em 2014.

Para a AGU e o Ministério Público Federal, no entanto, o prazo decadencial não se aplicava às anistias concedidas aos cabos. A medida, segundo as instituições, feriram a Constituição, já que ela exige que o anistiado tenha sofrido perseguição política, o que não estaria devidamente comprovado.

Para a AGU, a Comissão de Anistia fez uma “leitura equivocada” da portaria de 1964, levando à anistia indiscriminada de militares que foram “licenciados [da Aeronáutica] em razão tão somente da mera conclusão do tempo de serviço”.

A maior parte dos ministros do Supremo concordou com o argumento. De acordo com a tese fixada pela corte, em repercussão geral, “poderá a administração pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/64, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas”. O relator do caso foi o ministro Dias Toffoli.

Seguiram o voto relator os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux. Já os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello divergiram.

Para Toffoli, o ato administrativo que concedeu anistia não é passível de convalidação pelo tempo, uma vez que viola frontalmente o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em fevereiro deste ano, pouco depois da decisão do STF, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, já havia suspendido o pagamento de precatórios a 235 militares excluídos dos quadros da Força Aérea Brasileira em decorrência da Portaria 1.104/64.

Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o valor pago aos militares anistiados desde 2002 chega a R$ 3,9 bilhões. Caso o STF não tivesse autorizado a anulação, o Ministério da Defesa, responsável pelo pagamento dos benefícios, poderia ter que desembolsar, de uma só vez, R$ 13 bilhões para o pagamento de indenizações retroativas.


Por: Livio Sabatti

Publicado em: 3 de novembro de 2020

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