Autoridades públicas praticam desvio de poder quando contornam regras para dar nova roupagem a um ato irregular e, dessa forma, devem custear gastos que contrariam o interesse público. Assim entendeu a 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo ao determinar que o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) pague tudo o que a administração da capital paulista gastou com projeto de lei sobre a venda de uma área no Itaim Bibi (zona oeste).

O valor devido pelo atual ministro da Ciência ainda deve ser calculado com base na remuneração de cada servidor envolvido (de diferentes setores) na elaboração da proposta, por hora trabalhada — especialmente, segundo a decisão, nos gastos com representantes da Procuradoria-Geral do Município escalados para analisar o tema e defender o ex-prefeito no processo.

O advogado Igor Tamasauskas, defensor de Kassab, avalia que a decisão “não foi adequada” ao determinar que um ex-prefeito indenize pelo custo de um processo administrativo que foi público e aprovado pela Câmara.

Em embargos de declaração, ele afirma que não foi comprovado qualquer dano ao erário na tramitação da lei, e o Ministério Público já arquivou inquérito civil sobre a representação de agentes políticos pela Procuradoria-Geral do Município.

Quadrilátero cultural
Em 2011, Kassab enviou projeto de lei à Câmara Municipal para vender à iniciativa privada uma área conhecida como “quadrilátero cultural” do bairro Itaim Bibi.

A proposta tramitou em regime de urgência e foi sancionada como Lei 15.397/2011, que liberou esse tipo de negócio mediante licitação. Uma associação questionou o ato, em ação popular, pois no local existem três escolas públicas, biblioteca, teatro, sede da Apae e árvores de preservação permanente.

A 7ª Câmara definiu que, mesmo sem declarar a ilegalidade da lei e anular atos lesivos, poderia “admitir que a iniciativa do projeto de lei, a despeito de participar do processo legislativo, é ato administrativo, praticado no exercício de competência do chefe do Executivo, do qual resultaram efeitos concretos capazes de lesar direitos dos jurisdicionados”. Embora vereadores e secretários também sejam responsáveis pela aprovação da norma, o colegiado concluiu que o então prefeito “confirmou o mal feito”.

O juízo de primeiro grau já havia considerado a medida irregular, por ignorar dispositivos que exigem audiências públicas quando propostas envolvem crianças e adolescentes. A sentença, no entanto, afastou pedido de reparação ao erário, pois não identifica má-fé na tramitação do texto e na aprovação da lei.

O ex-prefeito respondeu que audiências públicas não são obrigatórias e, mesmo que fossem, caberia à Câmara convocá-las. Ainda segundo a defesa, o assunto não abrange diretamente direito das crianças e dos adolescentes, e a venda do quarteirão tinha interesse público porque os recursos seriam usados para construir creches e criar mais vagas na educação pré-escolar.

Irregularidades
Para o desembargador Luiz Sergio Fernandes de Souza, relator do recuso, o problema é que Kassab ignorou processo de tombamento da área, embora o Decreto-Lei 25/1937 defina que qualquer coisa tombada é inalienável por natureza.

Também ignorou, segundo ele, a “repercussão do ato administrativo na imprensa, nas mídias e na própria comunidade, que se mobilizou em torno da preservação do patrimônio público (…), cuja expressão histórica, cultural e ambiental foi objeto de alentados estudos”. O desembargador diz ainda que não havia qualquer projeto de impacto para remanejar árvores “praticamente centenárias” e catalogadas pelo Instituto de Biociências da USP.

“Primeiramente, dependesse, realmente, a construção de creches nos arrabaldes da desativação daqueles serviços,desenvolvidos na área de propriedade do município, ainda se poderia considerar a argumentação do chefe do Executivo. Fato é que uma coisa nada tem a ver com a outra. A Municipalidade tinha recursos de sobra para investir inclusive em outros projetos”, escreveu o relator.

Indícios de escândalo
O desembargador disse ainda existir “prova indiciária de que havia muitos interesses particulares envolvidos na proposta de lei”: a construtora responsável para elaborar o projeto básico já havia erguido “um imponente prédio” vizinho à área, e veículos de imprensa noticiaram que, na empresa, trabalhava a filha do ex-secretário envolvido diretamente no projeto urbanístico da iniciativa — ele, aliás, comprou imóveis no local.

A rápida tramitação foi “exuberante”, de acordo com o relator. “Indícios são prova (…), não impressionando o fato de se invocar aqui regra contida na lei adjetiva penal, porque a norma tem como fonte a teoria geral da prova”, afirmou.

Souza também fez questão de interpretar o caso a escândalos mais recentes. “Quando o assunto é dinheiro, todos passam a falar a mesma linguagem, direita e esquerda, conservadores e liberais,progressistas e reacionários. O que os une nem sempre é o propalado interesse público, mas um certo pragmatismo, como se vê agora, em tempos de [operação] ‘lava jato’.”

 

Fonte: CONJUR.


Por: Sabatti Advogados

Publicado em: 3 de novembro de 2020

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