Lesões corporais culposas graves ou gravíssimas em acidentes de trânsito

A nova Lei nº 13.546/2017 trouxe significativas alterações ao Código de Trânsito Brasileiro, todas, infelizmente, tendentes a incrementar ainda mais a incidência do Direito Penal sobre os ilícitos praticados na direção de veículos automotores. Em especial, a aumentar as penas dos crimes ali elencados.

Mais uma vez, invés de estimular maiores medidas de educação, agiu o Poder Público, simbolicamente, como se fosse esse ramo do Direito alguma espécie de panaceia, capaz de, por si só, resolver os enormes problemas que temos na área, e como se já não houvesse punição severa prevista no CTB.

Não se levou em conta sequer já ser o Brasil o terceiro maior país encarcerador do mundo e o fato de nossos presídios estarem superlotados.

Com efeito, ao prever o § 2º do art. 303 que a “pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima” – criou o legislador uma modalidade incomum de crime agravado pelo resultado, no qual, tanto a decorrência antecedente, como a consequente, demandam que as condutas sejam culposas.

Embora sejam tais crimes (agravados pelo resultado), de regra, ´preterdolosos´ – dolo no antecedente e culpa no consequente –, o Código Penal já prevê exceções (por isso digo que o modo é apenas incomum), seja permitindo a conformação do tipo qualificado em caso de ser o desfecho realizado dolosamente, seja qualificando pelo resultado delitos culposos (caso dos crimes contra a incolumidade pública, p. ex.).

A intenção, portanto, parece ter sido permitir que se perfectibilizasse o delito em apreço – crime de lesões corporais (culposas), no trânsito, qualificado pela natureza das lesões – diante da existência de duas condutas culposas.

Vale dizer, o agente deveria: (a) desrespeitar os cuidados básicos com a segurança exigidos na direção do veículo automotor; (b) de tal conduta se originarem lesões corporais na vítima; (c) amoldarem-se as lesões aos §§ 1º ou 2º, e seus incisos, do art. 129 do CP; (d) haver previsibilidade objetiva, tanto do resultado antecedente, como do consequente, dependendo do caso.

Ou seja: não bastaria, para a adequação típica, apenas que o resultado pudesse ser atribuído à ação (nexo causal), nem mesmo se estivesse o agente “com capacidade psicomotora alterada (…)”, mas se imporia que, a partir do ato especificamente por ele praticado no volante, fosse previsível (para alguém nas condições dele), tanto causar as lesões que de fato haveria causado, para o tipo simples, quanto originar as lesões graves ou gravíssimas, para o tipo qualificado (não há crime sem culpa).

Isto porque, no Estado Social e Democrático de Direito, não se permite a responsabilidade penal objetiva , nem mesmo no resultado qualificador, na esteira do art. 19 CP: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.”

De todo modo, na atual configuração do CTB, penso não ser possível, em nenhum caso, a aplicação da qualificadora.

Primeiro, a lei sequer esclarece o que seriam as lesões (culposas) graves ou gravíssimas nela referidas. E o princípio constitucional da legalidade (não há crime sem lei – anterior, escrita, estrita, certa – que o defina) não se coaduna com a mera “intenção” do legislador, por “melhor” que esta possa parecer.

Depois, ainda que se aceitasse aqui a interpretação a partir do Código Penal, força é convir que o CP não valora diferenciadamente a gravidade das lesões no caso do § 6º do art. 129 (crime de lesões corporais culposas). Ademais, quando descreve o que entende como sendo lesões graves ou gravíssimas, o faz, exclusivamente, em referência ao caput do artigo, isto é, em relação ao crime doloso.

Dito de outro modo: segundo o CP, as lesões somente serão graves ou gravíssimas se forem dolosas. A interpretação deve ser restritiva, portanto, sob pena da incidência de analogia ´in malam partem´.

Note-se que o § 4º do art. 291 da “atualização”, quando quis definir os critérios de cálculo da pena-base, fê-lo, modo expresso, referindo-se às circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP, “dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime.”

E assim agiu, acertadamente, tendo em conta a taxatividade que deve nortear os dispositivos penalizadores. Isto porque, na visão de BITENCOURT, “precisa-se ter presente que o princípio da reserva legal não se limita à tipificação de crimes, estendendo-se às suas consequências jurídicas”.

Como mostra FERRAJOLI (quanto ao princípio da reserva legal), “as negações do princípio e a admissão de analogia in malam partem formaram os traços comuns e distintivos das experiências penais totalitárias do nosso século”. Ainda: “Depois da Segunda Guerra Mundial, o princípio de estrita legalidade tem sido reafirmado solenemente.”

Em conclusão, penso que o julgador que pretender desprestigiar princípios constitucionais de interpretação em Direito Penal duramente conquistados, sob a rubrica de “corrigir a lei” – e aplicar qualificadoras não cristalinamente esclarecidas -, passará a desrespeitar também o princípio republicano da separação dos Poderes.

Numa democracia, por óbvio, toda a legislação deve tributo à Constituição – e não o contrário.

Fonte: Espaço Vital


Por: Sabatti Advogados

Publicado em: 3 de novembro de 2020

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